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Foto do escritorChico Kfouri

Minha viagem em 2015 para o Boga Lake, em Chittagong Hill Tracts. E como fui, possivelmente, o primeiro brasileiro a visitar a região.


Para começar é preciso entender que Bangaladesh é um país absolutamente plano, com elevação média de 12 metros acima do nível do mar. A maior parte da sua área é formada pelos deltas de rios que correm da Índia e de outras partes do Himalaia, incluindo o Ganges. A região que visitei, chamada Chittagong Hill Tracts, perto da fronteira com Myanmar, é a única região elevada. É caracterizada por relevo mais acidentado e onde estão localizados os pontos mais altos do país, entre 800 m e 1000 m. O clima muito úmido e a vegetação densa são habitats perfeitos para os mosquitos transmissores de malária, doença muito comum por ali. No ano anterior à minha visita um turista sueco, por falta de acesso a cuidados médicos, morreu em decorrência da doença.


Etnicamente 98% da população do país é formada por bengalis, de religião muçulmana, exceto na região dos Hill Tracts, onde habitam 12 minorias tribais que se diferenciam pela língua, cultura, características físicas e religião. Por causa dessas diferenças étnicas a região já foi palco de conflitos armados separatistas e é fortemente controlada pelo exército do país. Aqueles que pretendem explorar a área precisam de uma permissão especial e de passar por diversos check-points no caminho.


Devido às sérias deficiências em infraestrutura do país, para percorrer os 360 quilômetros da viagem entre Dhaka e o Lago Boga foram gastas 48 horas no percurso fazendo uso de meios de transporte terrestres e aquáticos. Trem, ônibus, jipe, barco e sapato.


Minha jornada começou de trem na capital, Dhaka, com destino a Chittagong, segunda maior cidade do país. Foram 12 horas chacoalhando e testemunhando cenas inusitadas para mim, como uma mãe segurando o filho pequeno para fora da janela do trem em movimento para que ele fizesse xixi; lixo sendo jogado para fora pelos passageiros como se fosse a coisa mais natural, um número enorme de vendedores de bananas, músicos de qualidade questionável cantando músicas que incomodavam os ouvidos, além das centenas de passageiros que faziam a jornada no teto do comboio. O percurso proporcionou-me admirar a paisagem, pude ver como a maior parte do país fica sob áreas alagadas e bastante verdes, a terra fértil é dominada pelas características plantações de arroz, bananais e outros vegetais. Percebe-se como a vida se desenvolve precariamente à beira dos trilhos.


Cheguei a Chittagong à noite. Na estação me esperava Mostafa, o simpático guia local sem o qual a viagem não seria possível. Fomos para o hotel passar a noite e nos encontrarmos com o casal de amigos americanos que formava o resto do nosso grupo. Na manhã seguinte seguimos de ônibus para cidade de Bandarban, porta de entrada da região dos Hill Tracts, onde é emitida a autorização para seguir viagem.


Quem já viajou pelas estradas do subcontinente indiano sabe que não é uma aventura para os fracos. Viajar na contramão é corriqueiro, motoristas usam a buzina como se fosse um escudo anticolisão, enquanto fazem as ultrapassagens as mais arrojadas possíveis sem se preocupar com quem ou o que vem no sentido contrário. No ônibus, com capacidade para aproximadamente 40 passageiros, viajava, pelo menos, o dobro disso. Quando os assentos se esgotaram as pessoas foram se acomodando no corredor, os que não couberam dentro do veículo, tomaram seu lugar no teto. Para minha surpresa, todos ali pagaram o mesmo valor na passagem, fosse para viajar em um dos bancos, no corredor ou na total insegurança de quem ia no teto. Foram 4 ou 5 horas de fortes emoções.


Já em Bandaram, fomos buscar nossas autorizações para entrar na região controlada, algo que tomou mais tempo do que planejado, o que nos fez perder a única van que nos levaria para o próximo ponto da viagem. Uma vez liberados, fomos em busca de transporte, porque não pretendíamos esperar ali até o dia seguinte. Mostafa conseguiu contratar um 4x4, bem velho, para nos levar, o que acabou sendo providencial, estávamos em agosto, mês de monções, e a precária estrada, se é que pode ser chamada assim, era um lamaçal. Percebemos como foi bom o atraso quando passamos pela van que teríamos pego, estava atolada no caminho. Seguimos viagem deslizando e sacolejando no nosso bravo e capenga jipinho. Não me lembro exatamente quanto tempo suamos dentro do carro até chegarmos à próxima vila. Tivemos que parar e apresentar nossos passaportes no posto de controle do exército. Ali foi a primeira vez que notei a curiosidade que meu passaporte brasileiro causou. Formalidades resolvidas, tomamos um chá no único estabelecimento existente por ali e pegamos o barco que nos levaria rio acima.


O barco de madeira não inspirava muita segurança, parecia não passar por manutenção há mais tempo do que eu gostaria de imaginar. Não tinha mais do que cinco metros de comprimento e contava com uma pequena área coberta tão baixa que, mesmo sentado no assoalho da embarcação, não era possível ficar com a coluna ereta sem que minha cabeça batesse na cobertura feita de bambu. Mas foi sob ela mesmo que me acomodei, porque logo que embarcamos começou a chover forte. A viagem pelo rio de águas barrentas seguia em ritmo lento e constante, não era interrompida nem quando o barqueiro removia, com uma panela velha, a água que ia se acumulando no fundo do barco. Não sei se entrava mais por cima ou por baixo.


Já estava escuro quando chegamos a Ruma Bazar, a última vila antes da área tribal, que lembrava muito uma das nossas favelas. Passamos a noite numa acomodação bem modesta, habitada por nós, alguns hóspedes bengalis e muitas baratas.


Logo cedo comemos parathas - tipo de pão frito muito comum em todo o Sul da Asia - omeletes, bananas e café instantâneo, é claro. Uma pausa para dizer que a variedade e o sabor das bananas existentes em Bangladesh são impressionantes. Até banana rosa experimentei por lá. Foi na saída da vila que comecei a perceber que talvez nenhum brasileiro tivesse passado por ali. Quando apresentei meu passaporte no posto de controle, novamente notei o espanto do oficial do exército que checava as autorizações. Ele olhou com muita curiosidade para meu documento e o comentário que se seguiu após o usual: “Brasil! Futebol! Neymar!”, foi: “Nunca vi um brasileiro por aqui”. Nomes devidamente anotados no livro e assinaturas colhidas, começamos então a longa caminhada morro acima por uma trilha muito enlameada e escorregadia, o que acarretou muitos tombos e muitas risadas de todos nós ao longo do caminho.


Conforme fomos nos afastando de Ruma e a manhã foi progredindo, o calor e a umidade começaram a nos mostrar que a jornada não seria fácil e que os 2 litros de água que cada um de nós carregava, talvez, não fosse o suficiente para repor o tanto de líquido que perdíamos pelo suor. Em menos de uma hora de caminhada eu estava completamente molhado, como se tivesse pulado de roupa numa piscina. A trilha foi estreitando, a vegetação adensando, as subidas ficando mais íngremes e longas. Os tombos continuavam a acontecer, mas já não tinham tanta graça.


Começamos então a cruzar com as primeiras pessoas das tribos locais que se dirigiam a Ruma para buscar suprimentos. Pela primeira vez percebi que elas tinham aparência completamente diferente da dos bengalis que eu tinha visto até então. Tem a pele mais clara, rosto mais redondo e olhos mais puxados, era como se estivéssemos entrando em outro país! Pelas rápidas trocas de palavras entre eles e nosso guia, era possível notar que a língua também era outra.


Depois de algumas horas de caminhada passamos pela primeira das tribos. As poucas casas eram feitas de bambu, os animais ciscavam soltos, as crianças pararam a brincadeira para olhar com curiosidade para nós. Paramos para clicar algumas fotos, a umidade era tanta que o visor da minha câmera estava completamente embaçado. Aproveitamos para descansar por algum tempo e recarregar as energias com as deliciosas bananas locais antes de seguir morro acima e lama abaixo.


Agora é uma boa hora pra contar que fiz uma péssima escolha de calçado. Quando me mudei do Canadá para Bangladesh, por conta da limitação de peso na bagagem que podíamos levar, deixei pra trás um par novinho de excelentes botas de trekking da marca Columbia. Já em Dhaka, comprei um par de algo que era um híbrido de sapato e bota de couro, com uma sola de borracha que parecia aderente e adequada para bater nas imundas ruas daquela cidade, mas que se mostraram totalmente inúteis para minha longa caminhada. Eu não conseguia parar de lembrar do conforto das minhas botas Columbia enquanto meus pés latejavam dentro do péssimo par que eu estava usando. A cada parada eu precisava me descalçar para aliviar a dor e comecei a notar que sob as unhas dos meus dedões começavam a se formar aquelas manchas pretas de sangue coagulado. O desconforto era tanto que, no último dia da viagem, preferi andar descalço.


Seguimos viagem. A paisagem ia ficando cada vez mais exuberante, a trilha mais apertada e escorregadia. Por causa do calor, da umidade e das subidas cada vez mais longas e íngremes, nosso progresso era lento. Travessias de córregos e riachos eram cada vez mais frequentes, o que acabava sendo sempre um bom momento para descanso e para nos refrescarmos nas águas correntes e limpas. As condições climáticas e geográficas, porém, não afetavam alguns carregadores locais que nos ultrapassaram com muita facilidade pela trilha. Levavam suprimentos para as vilas mais remotas em sacos enormes, que não deviam pesar menos de 30 quilos, pendurados por cintas apoiadas na testa. O senso de isolamento foi ficando cada vez mais evidente. Eu imaginava a dificuldade de uma remoção de emergência, torcia para não me machucar, para não ser infectado por malária e principalmente para chegar logo ao nosso destino. Eu estava exausto!


Mais adiante no caminho, depois de uma longa subida e uma providencial descida, chegamos a outra vila e avistamos algo que parecia uma miragem, uma barraca de chá! Construído em bambu, como tudo por ali, o pequeno estabelecimento tinha duas mesas e algumas cadeiras. Vendia água engarrafada, refrigerantes (quentes, porque não há energia elétrica na região), sacos de salgadinhos, e alguns mantimentos. Era o único comércio naquela área toda e um oásis para nossa cansada trupe. Um grupo de jovens ali presentes nos observava com curiosidade e admiração. Acho que não tinham visto muitos estrangeiros antes. Curiosamente, um dos garotos usava uma surrada camisa da seleção argentina (foi uma grande surpresa em Bangladesh aprender o quanto eles são fãs de futebol, especialmente da nossa seleção e da dos nossos vizinhos). Pouco importava a simplicidade do local, tampouco se era impossível identificar do que eram feitos os salgadinhos que comemos, nem quão doce era o chá que tomamos. Também era bom nem pensar de onde veio a água usada para prepará-lo, na condição de exaustão na qual estávamos, parecia um banquete num restaurante estrelado.


Por ali ficamos uns 30 minutos, por mais que minhas pernas não quisessem, já nos aproximávamos do final da manhã e era preciso continuar viagem. O sempre gentil Mostafa nos incentivou a levantarmos das cadeiras que atraíam nossos corpos com uma força magnética e informou que ainda tínhamos algumas horas de caminhada pela frente. Não achei um bom incentivo, mas não havia outro jeito a não ser continuar. Perguntei a ele se por ali conseguiríamos alguns cavalos ou jegues para nos levar até o lago. Às gargalhadas ele respondeu “você viu algum pelo caminho?!”. Entendi que aquilo significava que só meus doloridos pés me levariam até nosso destino.


As últimas horas de caminhada foram muito semelhantes às anteriores. Passamos por mais algumas vilas, fizemos mais algumas paradas para descanso e nos refrescarmos na água fresca dos riachos que desciam das montanhas. Finalmente, ao final da última longa e exaustiva subida, do topo do morro avistamos pela primeira vez o Lago Boga.


Diz a lenda local que o lago foi formado após habitantes de uma antiga vila khumi, uma das etnias da região, matarem e devorarem uma divindade, que retornou em forma dragão, causando um terremoto que abriu a terra, engolindo, assim, a vila e formando o lago. Já os geólogos acreditam que ele é formado pelo acumulo de água das chuvas e alimentado por um pequeno riacho chamado Boga, daí o nome do lago. De longe pudemos ver suas águas refletindo o verde da vegetação abundante dos morros que o cercam. Também foi possível avistar a luz do sol, quente, refletindo nos telhados de metal corrugado de algumas das casas da pequena vila instalada à beira do lago. Sinal de que ela era a mais desenvolvida da região, pois quase todas as casas que tínhamos visto até então eram cobertas de bambu. Mas também me fez pensar que as chapas chegaram até lá no lombo de alguém.


Algumas dezenas de metros antes da vila, fica instalada uma base do exército, na qual, mais uma vez, tivemos que apresentar nossos passaportes. Foi nesse momento em que a noção de que talvez nenhum brasileiro tivesse passado por lá ficou mais clara. Como já havia acontecido antes, o oficial que pegou meu passaporte, surpreso com minha nacionalidade, resolveu, então, pesquisar as páginas do livro no qual ficam anotados os dados das poucas pessoas que visitam a região. Página após página, entre uma maioria de nomes locais, encontramos nacionalidades diversas: americanos, ingleses, italianos, espanhóis, alemães, suíços, suecos, israelenses etc. Mas, de fato, dentro do registro de vários anos que o livro cobria, não havia nenhum brasileiro! Após a busca o oficial e Mostafa me olharam com alegria e disseram estarem convencidos de que eu era o primeiro brazuca a visitar a região! Talvez eu tenha sido mesmo.


Exaustos, mas felizes por termos chegado ao nosso destino, descemos para a vila e fomos buscar nossa acomodação. O lugarejo, de aproximadamente trinta casas, é habitado por algumas poucas famílias da tribo Bom ou Bawm, as duas grafias são aceitas. Existemapenas 16.000 pessoas da etnia no mundo, a maior parte nos Hill Tracts em Bangladesh e uma pequena parte em Myanmar e na Índia. Vale notar que eles são cristãos. Discretos e reservados, nos observaram com curiosidade e, diferentemente do bengalis, não nos cercaram e nem nos encheram de perguntas. O lago atrai um pequeno número de turistas anualmente, por isso algumas famílias transformaram suas casas em hospedarias. Foi numa delas que nos hospedamos.


Passamos dois dias por lá. Os banhos eram tomados no lago, com direito a tratamento de spa. Quem viajou pelo Sudeste Asiático já se deparou com os spas que oferecem tanques de vidro para os turistas afundarem os pés e terem a pele morta removida por peixes. No lago isso acontecia de graça.


De lá fizemos ainda um bate-e-volta para o Pico Keokradong, considerado pelos locais como o mais alto de Bangladesh. Há uma pedra cravada no local que orgulhosamente anuncia os não tão impressionantes 986 m de elevação do local como sendo o “highest peak of Bangladesh”, embora o Google desminta a informação.


Minha viagem para o Boga Lake é a melhor memória que guardo do tempo que morei em Bangladesh. As fotos não são do nível que eu gostaria porque eu ainda estava começando a fotografar, mas servem como registro do que seja, possivelmente, a única visita de um brasileiro por lá. Se alguém já tiver visitado a região ou conheça alguém que já o fez, que me desminta, por enquanto fico com a palavra do oficial do exército.

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